Meu pai me transmitiu um amor muito grande pela obra de Monteiro Lobato, que foi um dos sustentáculos de sua infância sofrida, Lobato transmitiu a ele a ideia da autodeterminação, que o ajudou a superar muitos obstáculos, ao mesmo tempo em que passou a imprescindível noção de ternura para com as coisas da infância.
Por essa razão, e por razões inerentes à obra do grande escritor paulista, não posso deixar de defendê-lo, neste momento em que ele tem sido acusado de ser “racista” por alguns técnicos do Ministério da Educação, que querem proibir seus livros de circularem junto ao público infantil.
Se Lobato fosse racista, não teria criado a maior e mais querida personagem negra de toda a nossa literatura infanto-juvenil, a tia Nastácia. A acusação veio à tona justamente porque o autor teria adjetivado a personagem com o epíteto “negra beiçuda”, o que seria incompatível com que é politicamente correto nos dias de hoje. Ora! Em primeiro lugar, não se pode matar a liberdade de expressão em função de uma ideologia larvar, malformada, e, em segundo, “negra beiçuda” pode ser entendida como uma caracterização terna e afetuosa, principalmente por pessoas que não possuem somente ódio no coração.
Outro argumento que acaba de vez com esse suposto racismo de Lobato é um de seus livros de ficção adulta, intitulado “O presidente negro ou O choque das raças (romance americano do ano 2228)”, romance futurista que previu, dentre outros avatares, a eleição do primeiro presidente negro dos EUA, numa época em que isso era muito mais improvável do que chegar à lua (1921). O livro conta a estória de um cientista despirocado que inventa uma máquina chamada futuroscópio, por meio da qual as personagens visualizam o longínquo ano de 2228, no qual finalmente um homem negro chegaria à presidência dos Estados Unidos da América.
A eleição de Barack Obama, em 2008, antecipou em 220 anos a profecia de Monteiro Lobato, mas o autor foi lembrado e celebrado quando da eleição do primeiro presidente negro da vida real, principalmente em editorias do jornal O Estado de S. Paulo, do qual Lobato foi contumaz colaborador por todos os anos de sua vida produtiva como escritor.
Além de não ser racista, Monteiro Lobato foi um visionário e também foi perseguido por defender a exploração de Petróleo no Brasil.
Fundou diversas companhias para essa finalidade, numa época – na década de 1930 – na qual não se admitia que houvesse petróleo em solo nacional; chegou, inclusive, a ser preso e expulso do Brasil por essa razão, durante o governo de Getúlio Vargas.
Ademais, há de se ver o contexto no qual os personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo foram criados: Lobato foi influenciado por uma educação positivista, progressista, baseada nas ideais de Augusto Comte e Friedrich Nietzsche, segundo as quais a educação baseada nos critérios científicos elevaria o homem a uma condição de senhor-de-si, independente de tutores. Além disso, naquela época, ainda se convivia com resquícios da escravidão, e a configuração social brasileira, naturalmente, refletia ainda a situação do negro liberto, que era, em realidade, a condição de um servo semi-escravizado, cumprindo numa família abastada o papel de um agregado, aquele que tem responsabilidades de um membro da família, e que não é remunerado para tal função, mesmo sem ser membro dessa família; é o caso das amas-de-leite, e da tia Nastácia.
Ainda hoje se convive com as figuras dessas “mucamas” em nossa sociedade, e elas são muito bem quistas pelas pessoas que ajudaram a criar; portanto, não há racismo: somos uma sociedade miscigenada e cada dia há menos espaço para racismos.
Justamente por constituirmos uma sociedade democrática, é preciso haver espaço para a manifestação das ideias divergentes, inclusive, veja-se como uma obra literária pode saudavelmente servir de base para uma discussão que traga à baila inúmeras questões adjacentes à questão racial, quais sejam questões de ordem histórica, cultural, econômica ou literária – que podem se dar, inclusive, em sala de aula, a partir das próprias obras de Lobato.
Por fim, não consigo enxergar racismo nas obras de Monteiro Lobato, pois, pelo contrário, acho que são, justamente, uma crítica a um racismo rasteiro, pois que discute as ideias de raça, as aborda sem restrições, cria personagens negros, não despreza essa importante etnia constitutiva de nossa sociedade, e contribui, com sua obra, para a criação do que vivemos hoje, ou seja, uma sociedade na qual a pluralidade de ideias é permitida e valorizada. Monteiro Lobato (1882-1948) não teve a sorte de viver em uma época como a nossa.