Publicado em 2016 pela Editora Danúbio2019
Falar de Otto Maria Carpeaux para mim é, ao mesmo tempo, extremamente fácil, mas também muito difícil. Fácil porque é como se eu falasse comigo mesmo, tamanha a influência de sua obra em minha formação cultural e musical. Difícil, porque falar de alguém tão decisivo, que me fez optar por me profissionalizar como músico erudito, e de alguém tão fundamental para a própria cultura brasileira, requer muita isenção, disciplina e senso de responsabilidade.
Como um pássaro de ponta em revoada, foi o nosso Otto Karpfen, nascido judeu em Viena, e convertido ao catolicismo, ao que adotou a forma afrancesada de seu sobrenome – Carpeaux- antecedido do sinal de sua devoção religiosa – Maria, a mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo – a abrir caminhos de suntuosa beleza e poesia, a descortinar horizontes inimagináveis, a ampliar nossa existência sensível e a despertar-nos para a dimensão redentora da beleza poética inerente às grandes obras musicais.
Confesso: não sei qual parte de meu gosto musical vem de mim ou o que vem das “lectures”, registradas em livros, ensaios, coletâneas, de Carpeaux, tamanha a confiança que nutri sempre por seu bom gosto, sem nunca – jamais, ter me decepcionado.
Foi ele nosso – nosso porque abrasileirou-se, sem desaustrializar-se – crítico por excelência, que generosamente adotou o português para realização de suas obras máximas (História da Literatura Universal, Ensaios Reunidos, Pequena História da Música), além de mais um fruto perfeito e acabado do glorioso Império Austro-Húngaro, assim como Haydn, Mozart, Beethoven, seus compositores prediletos.
Sua formação cultural era tão vasta e inabarcável, que na chegada do mestre ao Brasil, em 1941, a vida cultural tupiniquim ganhou novo esplendor, e sua ação direta como agitador cultural ajudou a retardar em pelo menos 30 anos a decadência da cultura brasileira, que se deu a partir da década de 1960 pelo processo de ideologização gramscista, o que ainda hoje dá frutos nefastos, como o galopante analfabetismo funcional de nossas elites universitárias.
Em contraste a essa triste e atual realidade, a formação cultural de Carpeaux é assombrosamente vasta, mas permanece um grande mistério. Contudo, ele oferece uma importante pista sobre seus anos formativos no Ensaio Dvorák e o Folclore Musical (pg.?): fala expressamente do congresso do qual participou, provavelmente em Viena, a “Meca” da alta cultura musical desde o inteiro séc. XIX até o fim do séc. XX. Isso nos faz antever que este deva ser apenas um dentre inúmeros eventos formativos que moldaram a sua personalidade culta, refinada e gravemente séria, não rara de se encontrar dentre os membros da casta intelectual no Império Austro-Húngaro, que é o berço ― de nascença e cultural ― de O.M.C
Já No ensaio Beethoven em Viena, Carpeaux define com exatidão o ambiente cultural da capital austríaca, e dá mais uma mostra de que sorveu profundamente seu legado, ao falar sobre Haydn: “O velho mestre foi mistura encantadora de requinte artístico e ingenuidade esperta de camponês, tradição católica e formalismo quase científico, ostentação aristocrática e racionalismo burguês. É um conjunto que define a Viena de 1790” (pg.??) Esse mesmo conjunto de fatores define a obra de Carpeaux.
Exatamente por essa razão que causa grande espanto o sombrio dado biográfico de que o austero e cultíssimo Carpeaux tenha caído vítima da asfixiante atmosfera ideologizante da cultura brasileira. Contudo, para menor dos males, isso aconteceu apenas no final de sua vida, o que não comprometeu em nada a qualidade de seus trabalhos anteriores, conforme demonstra o filósofo Olavo de Carvalho, que é um dos principais responsáveis pelo novo interesse em torno da obra de Carpeaux no Brasil, e que contribuiu decisivamente para o redimensionamento de seu legado, de modo que justiça tem sido feita.
O Canto do Violino é prova disto.
Este livro que vos apresento não é um guia de História da Música, mas um tratado provocador que convida o público leitor a repensar toda a História da Grande Música Ocidental, tendo por guia notável homem de letras, qual fosse um Virgílio, a conduzir Dante Alhiguieri pelos mundos supra-sensíveis da Divina Comédia: Carpeaux é nosso guia através dos deslumbrantes jardins da Divina Música!
Portanto, “O canto do violino” é um monumental esforço apreciativo, que situa o leitor no cerne das mais importantes questões musicais – sem deixar de lado as polêmicas – dos últimos quinze séculos!
Por exemplo, as explicações de Carpeaux sobre a relação entre forma musical e impulso artístico espiritual são mais completas e conclusivas do que a quase totalidade dos estudos acadêmicos brasileiros do século XXI, o que demonstra, sem sombra de dúvida, que o seu legado como crítico e historiador da música ainda não foi absorvido no país que o abrigou.
Já no riquíssimo Ensaio intitulado Dvorák e o Folclore Musical , o crítico austro-brasileiro faz uma conclusiva distinção entre a música nacional e a música popular, o que não é ponto pacífico nos debates acadêmicos vez que prioriza-se a discussão ideológica em detrimento das discussões propriamente musicais.
Outro exemplo de crítica musical isenta que contrasta fortemente com o que se faz hoje em dia no Brasil aparece no Ensaio sobre Eric Satie (pg.?). Ao contrário de grande parte dos críticos brasileiros, ao tratar de compositores adeptos de vanguardismos e modas excêntricas, Carpeaux procura a exatidão na apreciação crítica da obra musical, e desfaz com isso as típicas atitudes idolátricas da crítica brasileira em relação a tudo que tenha mínimo olor de “vanguarda”. Ao mesmo tempo, no mesmo texto, o autor elabora uma poderosa síntese histórica das complexas tendências artísticas do final do séc. XIX e início do séc. XX, com grande argúcia e concisão, no que resume livros inteiros, que dedicados cada qual a cada fragmento dessas linhas históricas, ou ainda, a questões hiper-especializadas. A visão de Carpeaux é global, mas não deixa de almejar a exatidão, o que atinge muitas vezes – ao menos na esfera factual.
Eis uma pista indispensável para entendermos porque a Crítica Musical de Otto Maria Carpeaux é tão desconhecida no Brasil atualmente: não foi ele adepto entusiasmado muito menos acrítico diante das “modas” do momento.
Porém, agora não mais.
Os artigos reunidos neste volume, embora a um olhar descuidado aparentem não se relacionar, são expressão dessa mesma privilegiada visão global de Carpeaux acerca da manifestação artística que mais o assombrava, mas que considerava a mais elevada de todas as formas de arte: a Música de Concerto.
Engana-se quem aposta que este livro é privilégio para iniciados, ou para integrantes consagrados do mètier musical, muito pelo contrário: é obra fortemente indicada para todos os públicos, de todas as idades, e de todos os gostos musicais, enfim, a todos que estejam abertos à ampliação de sua cultura musical e que tenham vontade de se aventurar por universos sonoros os mais sublimes.
Apesar de usar esmerada linguagem, sabe Carpeaux dosar seus requintes de expressão com poderosa clareza de raciocínio e inigualável capacidade de síntese, o que faz do livro grande alimento espiritual, mas de fácil e agradável digestão.
As notas que fiz aos 26 artigos que compõem o presente livro, escritos entre as décadas de 1940 e 1950, e publicados em distintos jornais brasileiros da época, são marcadas com (DM) ao final, e têm o intuito mais de contextualizar estes escritos do crítico austro-brasileiro com informações que ainda não eram disponíveis à época de sua redação, como por exemplo, quando Carpeaux questiona se Igor Stravinsky um dia se arrependeria das críticas que fizera a Beethoven ainda na década de 1920, o que o fez somente na década de 1960.
Em relação a outros trechos, desenvolvi algumas questões que no texto original, devido ao estilo, eram rigorosamente sintéticas. E poucas vezes procuramos explicar algum termo, obra ou idéia como se o autor não o tivesse feito, motivo pelo qual acrescentamos ao final um índice com dados biográficos de compositores abordados por Otto Maria Carpeaux ao longo de todos os artigos que compõem este livro.
O Canto do Violino resulta em Obra-janela não só para a PAIDÉIA da Grande Música Universal, como também para a próprio obra crítica de Carpeaux, pois quando escreve sobre música revela muito de seu método crítico e também de seu processo de escrita.
Uma das coisas mais formidáveis dos textos reunidos neste volume é que são valioso instrumento para apreendermos o próprio método crítico de OMC, em que se nota o caráter ensaístico de sua crítica musical.
Ocorre que, à maneira de Montaigne, o autor escora seu raciocínio nas obras dos grandes escritores da literatura universal, no que estabelece pontos de comparação para as obras que aprecia criticamente, e assim sempre as coteja com as mais elevadas obras do espírito humano.
Esse círculo de referências de Carpeaux, no entanto, funciona como o centro de gravidade que plasma toda sua apaixonada averiguação da verdade, ou seja, do peso e da medida de cada obra musical que apresenta ao público em seus artigos jornalísticos, que são peças de crítica musical mas também verdadeiros ensaios montaignianos sobre os temas discutidos.
Também no Ensaio O outro Mozart , Carpeaux lança-se, ao estilo de Montaigne, à investigação ensaística, e revela ao leitor os caminhos de seu pensamento, as pistas de sua pesquisa, os movimentos de seu espírito, para o que lança mão da enumeração de panteão dos grandes mestres da escrita: ETA Hoffmann, Kierkegaard, Shakespeare, Goethe, Rilke, assim como elevadas referências dentro do universo propriamente musical, como Haydn, Beethoven, Wagner, Brahms, Tchaikovsky. O texto costura essas referências e eleva os padrões de inteligibilidade pelo método ensaístico, caracterizado por sístoles e diástoles, marchas e contramarchas, aproximações e distanciamentos, sem a preocupação com a prova formal, ao mesmo tempo em que dialeticamente constrói-se um discurso altamente persuasivo, como ficará evidente na leitura do Ensaio Esplendor e miséria dos músicos (pg.???), e,m que mais uma vez, a enumeração de exemplos e referências faz do texto ponderação ensaística ipso facto.
Já no Ensaio sobre a Ópera Manon Lescaut, de Massenet, o texto é exemplo cabal do método interpretativo de Carpeaux, pois relata sua experiência pessoal com essa obra musical para ele tão significativa, a cujos contornos mnemônicos ajusta outras impressões.
Trata-se de uma metodologia crítica que poderia ser definida por “intuicionismo impressionista”, termo insinuado nas reflexões do filósofo Olavo de Carvalho acerca de Carpeaux (texto introdutório aos Ensaios Reunidos).
Olavo de Carvalho redimensiona o legado de Carpeaux, e também realça que OMC parte de intuições diretas e imediatas, ao que superpõe uma série de impressões que tomam a forma das reflexões crítico-ensaísticas que identificamos aqui como notável característica dos textos sobre música reunidos neste volume.
Para Carpeaux, a música era manancial para o desenvolvimento do intelecto e de todas outras faculdades cognitivas subjacentes. Os conhecimentos musicais de Carpeaux realmente acrescentaram muitos recursos a seu consagrado estilo como crítico literário.
Já se sabe desde a Grécia antiga, que todo conhecimento tem por base um escopo auditivo. Para Platão, a educação musical era tida como pré-requisito para uma educação cívica de qualidade, o que era fundamental para a constituição de um Estado Virtuoso. Já Aristóteles vai mais longe, e situa a percepção auditiva como base para todo o desenvolvimento do intelecto humano. Por esta razão, o mestre peripatético recomendava em seu Liceu que seus alunos fossem iniciados antes nas artes musicais, na poesia e na dança que nos estudos de gramática ou retórica, visto que o conhecimento linguístico só pode ser adquirido após um mínimo de treinamento auditivo.
Carpeaux sabia disto e aplicava esse saber em seu próprio método de escrita: a percepção auditiva de Carpeaux, devido à sua imensa erudição musical, é das maiores que a humanidade já produziu. Por consequência, a inabarcável quantidade de nuanças captadas por Carpeaux em sua História da Literatura Universal só é explicável porque lhe comunicavam os saberes musicais como instrumento auxiliar da crítica e da captação de nuanças que são absolutamente imperceptíveis aos leigos em música. E exatamente por esta razão, defendia que a cultura musical deve ser o centro da formação cultural do homem culto.
No Ensaio Um crítico de Música, em que discorre sobre ditos e feitos do compositor e crítico inglês Donald Francis Tovey, Carpeaux deixa claro o quanto considera indispensável a cultura musical na formação geral do homem de letras: “Quando alguém, em sua presença, ousava falar, com desprezo, de Haydn como “homem de poucas letras”, respondeu: “Introduzir novo tema num movimento sinfônico requer tanta inteligência como a introdução de novo personagem numa tragédia de Racine ou Shakespeare” (pg.?? – em qual vai ficar na revisão final).
No mesmo sentido vem o comentário que se encontra no Ensaio Stendhal e a Música, “A ignorância, em matéria de música, de escritores que fizeram tanta questão de documentar-se bem, como Balzac e Zola, é grotesca.”. Não duvido que com a preocupação de elevar os padrões da literatura universal tenha Carpeaux escrito sua Pequena História da Música. (Ediouro, 2001)
Contudo, a cultura musical não era apenas um pré-requisito para a compreensão da literatura, para Carpeaux, mas também ponte de diálogo na apreensão das grandes obras do espírito humano. Tal é o que se aduz do Ensaio Cervantes e Beethoven, no qual toma a obra máxima do novelista espanhol, Dom Quixote de La Mancha, incontornável clássico da Literatura Universal, para aclarar a compreensão de intrincada questão interpretativa do universo operístico-musical, a qual não anteciparei aqui.
Apenas adianto que, saborosamente, alta cultura em suas formas literária e musical conjugam-se mais uma vez no referido Ensaio.
Nessa mesma direção, no ensaio Romantismo de Beethoven (pg.??), Carpeaux diz: “A arte de Beethoven tem de ser reenquadrada entre os fatores determinantes da evolução cultural, ao lado da literatura” Neste trecho fica evidente a importância dos conhecimentos musicais na composição do estilo de OMC como crítico literário, pois o autor defende que ambas as artes, música e literatura, devem ser entendidas, estudadas e analisadas sob o mesmo método.
Sabia bem Carpeaux que a alta cultura musical tem a capacidade de irradiar compreensão, qualidades e dons para as outras áreas da existência humana. E neste trecho já escreve em tom profético, a antever o declínio cultural do ocidente, ao mesmo tempo em que sugere um poderoso antídoto: a preservação de um dos mais importantes núcleos da alta cultura musical: a elevada tradição do gênero quarteto de cordas.
Foi Carpeaux grande promotor e divulgador dos Quartetos de Cordas, em especial dos últimos de Beethoven. O Gênero em si já é dos mais elevados, em termos técnico-musicais e artístico-expressivos; e dentro deste elevado gênero, os últimos quartetos de Beethoven ocupam o topo do sagrado panteão da beleza musical. Eram as obras musicais que mais agradavam o nosso Otto Karpfen.
Há quem diga ser elitista o gosto musical de Carpeaux. Prefiro chamá-lo de Aristocrático. Proveniente que é ele de uma sociedade aristocrática, mas que tem o mérito de ter engendrado os melhores e mais elevados frutos do talento artístico humano.
Não duvidem de que o Brasil ganha não só uma obra inédita, mas também fundamental para nos guiar seguramente pelo maravilhoso Universo da Grande Música Ocidental, e como um bônus, reinstauramos imediatamente ideia do que foi o meio jornalístico brasileiro nas décadas de 1940 e 1950.
A Editora que levou a cabo essa empreitada tão essencial à oxigenação de nosso cenário cultural brasileiro em que reina a doutrinação ideológica, não poderia levar outro nome: Danúbio, nome do rio que corta Viena, a cidade que deu ao mundo Otto Maria Carpeaux, a Athenas do séc.XIX e início do XX, celeiro não só de nosso maior crítico musical e literário de todos os tempos, mas também o de muitos dos maiores Mestres da História da Música.
Que este livro traga a inspiração e o oxigênio que o rio Danúbio leva às terras de onde brotaram os maiores fenômenos musicais da História Humana para oxigenar a nossa vida cultural e musical em terras brasílicas!